Um dia isso passa?
Não. Mas, em algum momento, torna-se suportável.
É difícil dimensionar perdas. Difícil para quem já perdeu, impossível para que nunca vivenciou. Seguindo a ordem natural das coisas, somos nós filhos que enterramos nossos pais. Tarefa que deve ser dura e perversa, mas que segue uma lógica existencial. Porém, não são apenas em volta desses casos que a Terra roda, há de se lembrar que não é sempre que essa ordem natural é seguida. Quem nunca ouviu falar que não existe dor maior do que a dor de perder um filho? Sinto e entendo que não posso mensurar nem 1% dessa dor.
Diferentemente do que apresentou em seus outros trabalhos, John Cameron Mitchell (Shortbus) vem nos propor uma reflexão de como conciliar dor e vida em seu mais novo projeto: Reencontrando a Felicidade (Rabbit Hole, 2010. EUA), obra baseada numa peça da Broadway, vencedora de diversos prêmios (inclusive o Pulitzer). Mitchel apresenta uma visão totalmente alheia dos clichês que nós sabemos que rondam uma família arrebatada pela perda de um filho. Ao invés de mostrar a morte, causar impactos, dramatizar, Mitchel inicia sua história oito meses após o incidente, na tentativa de sobrevivência das vítimas ilesas. A intenção é mostrar ou pelo menos tentar encontrar meios em que os pais possam continuar a viver.
A história se passa no antro de uma família de classe média americana. O objetivo inicial do filme é revelar como Becca (Nicole Kidman, ressurgindo) e Howie (Aaron Ekhart) estão reagindo a prematura morte do filho Danny, de 4 anos. Danny (que em nenhum momento aparece de frente para a tela) morreu na porta de casa, atropelado por um automóvel. Becca e Howie reagem de formas diferentes e desconexas. A mãe parece ser mais fria, mais controlada, mas no decorrer do filme vemos que é só uma casca. Becca entende que a melhor forma de esquecer a dor é negar a existência do filho para si mesma, negar os acontecimentos. Assim, Becca esconde numa caixa tudo o que faz com que ela lembre o filho. O sofrimento de Becca é visível, é cru, está solto pra quem quiser ver. Diferente de Howie. O pai aparentemente e sob suas ações parece sofrer mais. Howie vê vídeos do menino, fala de Danny o tempo todo (“Eu acho que ele vai sair debaixo da cama e aparecer do nada como ele sempre fazia”) e, ainda, acredita sofrer mais que Becca.
São diferentes situações. O pai que nada vê e tudo sente e a mãe que emblematicamente procura um ponto de redenção, uma válvula de escape. Válvula de escape essa que será usada por Howie diversas vezes, na procura por outras mulheres ou nas drogas. Incrivelmente, Becca encontrará um caminho para a libertação de sua angústia no garoto que atropelou seu filho. Na construção de uma relação única e desafiadora, Becca propõe-se uma nova chance.
Durante toda a narrativa, que é lenta e pesada (com a temática do filme não podia ser diferente) aparecem alguns personagens na vida do casal, como a mãe de Becca, interpretada pela ótima Dianne Wiest (a mesma vendedora de Avon em Edward – Mãos deTesoura e vencedora de dois Oscars), que compara a morte de Danny com a de seu filho (morto em função do uso de drogas). Um dos diálogos mais alucinantes do filme se dá entre Becca e a mãe. Numa lavanderia Becca, esgotada, pergunta a mãe se a dor vai passar. A personagem de Wiest consegue dar uma das definições mais simples e emocionantes quanto à passagem da dor: “Depois de um tempo a dor sai do peito e é como um tijolo que a gente coloca no bolso. A gente esquece. Até que se lembra do peso. Colocamos a mão no bolso e pensamos ‘Ahh, é isso’”. Também temos a deliciosa ponta de Sandra Oh (Grey’s Anatomy) como uma mãe que perdeu o filho, usuária de maconha e possível affair de Howie.
O filme, claro, fica sob as costas de Nicole Kidman. Aaron Eckhart está ótimo como o pai persistente na dor, mas, de certa forma, ele serve como um trampolim a Kidman. A atriz que não apresentava uma atuação digna de quem já ganhou um Oscar por interpretar Virginia Woolf desde o longínquo Dogville (2003), volta com toda a sua graça e força física. Nicole dá vida ao texto, faz do silêncio uma experiência ensurdecedora, faz dos nossos olhos um oceano. É algo parecido com gratificação o que eu sinto por Nicole. Torci tanto por sua volta por cima que me sinto como um dos responsáveis pela merecidíssima conquista de sua terceira indicação ao Oscar por esse trabalho. Apesar de que sua incrível força física vem sendo abalada pelo excesso de Botox no rosto. Mas, enfim, é o retorno de Safine, de Vírginia, de Grace, de Nicole, tudo em Becca.
No intuito de criar uma metáfora de simplicidade e de recomeço, o diretor optou por uma fotografia bastante primária, mas, ainda assim, sublime. A fotografia foca nas relações líquidas do nosso cotidiano, a relação do verde (planta) com a terra molhada, do açúcar com água virando caramelo. É como se fosse a visão de um bebê, que vai aprendendo e assimilando essas relações. A metáfora é a tentativa de renascimento de Becca, é o olhar apurado para essas coisas simples.
Mitchell , como já disse, ganha pontos por não cair na vala do senso comum. O diretor sabiamente deu um rumo inusitado ao seu trabalho. Não escolheu saturar uma relação entre pais e filho e, assim, tirar abruptamente o filho de cena. Fez melhor. Na construção de uma “teoria” de como sobreviver à ausência do filho, o diretor constrói uma obra emocionante e única, porque esse é um dos poucos filmes em que o mestre não apela para o melodrama.
Saber dosar sofrimento, realidade. Saber até onde ir, onde parar. Saber crescer com os infortúnios, saber dançar na cara da morte. Não existe poço que não tenha fundo nem queda que nunca acabe. Não existe escuridão sem luz nem luz sem trevas. O que existe é apenas uma vontade incessante de proteger, dominar, restaurar, voltar. O medo de seguir adiante é o medo que existe em mim, que existe em você.
Achei lindo o texto, o desenvolvimento do filme...
ResponderExcluirme chamou muito a atenção guzinho...
e ainda terminou maestramente.
Lindo!
mt bom te ler.
"
Saber dosar sofrimento, realidade. Saber até onde ir, onde parar. Saber crescer com os infortúnios, saber dançar na cara da morte. Não existe poço que não tenha fundo nem queda que nunca acabe. Não existe escuridão sem luz nem luz sem trevas. O que existe é apenas uma vontade incessante de proteger, dominar, restaurar, voltar. O medo de seguir adiante é o medo que existe em mim, que existe em você."
Mandou muito! pqp
Cara, resenha MUITO boa, Guzinho! Não vi o filme, mas me deixou mais tentada ainda a ver! Já tinha vontade antes por ser fã da Nicole, agora vou correr pra assistir =) Se você tiver ai no pc, me passa depois? beijos, saudades
ResponderExcluirMuito lindo o texto...e o cuidado que tem com cada palavra...muito legal!Parabéns novamente.=)
ResponderExcluir