“Quando você mata um homem, você é um assassino. Mate muitos, e você é um conquistador. Mate todos, então você é um Deus!”
Quem nunca assistiu a um filme sobre o Holocausto que atire a primeira pedra (nunca soube “onomatopeizar” nenhum tipo de som). Brincadeiras a parte, não é preciso ter criado um vínculo tão forte com a indústria cinematográfica, para saber o quão esta se encontra saturada por obras que insistem em tematizar os horrores sofridos durante a Segunda Guerra Mundial. A crítica também não aparece por simples incômodo ou por notável vontade de criticar, afinal, existem filmes excelentes que abordam o tema, só acredito mesmo, que o Holocausto foi um tema tão desgastado no cinema, que se não houver uma predileção à inovação (vide Bastardos Inglórios), as obras continuarão cansativas e dando margem a velha sensação de “já vi esse filme antes”.
Mas, como eu disse anteriormente, existem obras espetaculares que abordam o tema, e hoje, eu vim tratar de uma delas. Entre todas elas, podemos citar os premiadíssimos A Lista de Schindler (1993) e O Resgate do Soldado Ryan (1998), ambos do gênio Steven Spielberg (que por coincidência foi vencedor de diversos prêmios justamente na abordagem dos fatos da guerra). Além destes, vale relembrar do meloso, mas bom, A Vida é Bela (1998), O Leitor (2008) e, do já lembrado, Bastardos Inglórios (2009). Todos eles se tornaram filmes reconhecidíssimos, premiados e festejados não pelo tema, mas sim, pela inovação, pelo novo olhar lançado à catástrofe.
Não mencionado ainda, nem por isso pior, consagrou-se O Pianista (Le Pianist/ The Pianist, França, Polônia, Reino Unido, Alemanha. 2002), longa denso e inovador quanto ao olhar direcionado à guerra. Não se trata de mais um extermínio de judeus, nem da história de uma família que foi implodida pela Segunda Guerra. O olhar, nesta obra, é de apenas um sujeito, é o olhar de um homem que não tinha mais nada a perder em sua luta pela sobrevivência. O drama, reconhecido nos quatro cantos do mundo, se estruturou nessa ordem de visão: não importava mais colocar 45 milhões de pessoas sofrendo em frente à tela, se isso podia ser feito com apenas uma das personagens desse massacre.
Roman Polanski, diretor de clássicos como Repulsa ao Sexo (1965), O Bebê de Rosemary (1968) e Chinatown (1974), não tinha feito um filme que fechasse de vez os elos de seu talento. Não que os filmes citados neste parágrafo não sejam de qualidade exímia, muito pelo contrário, mas ainda estava faltando a cereja do bolo. Em Repulsa ao Sexo, fez um brilhante thriller psicológico ao lado de Catherine Deneuve; no cultuado O Bebê de Rosemary, Polanski deu asas à imaginação e colocou Mia Farrow segurando o filho do demônio; em Chinatown, descobriu mais uma das faces do esplendoroso Jack Nicholson; em O Pianista, Polanski mostrou quem era Polanski, mostrou o que ele leva da vida e transmitiu uma das maiores mensagens de paz já vista, ainda mais, com o auxílio da arte como ponto de redenção e força para a sobrevivência do homem.
O Pianista não é autobiográfico. Polanski viveu dias de guerra (perdeu a mãe e a irmã num campo de concentração nazista), mas não é sua história que ele vem contar. O diretor francês optou por contar a vida pré, durante e pós guerra de um dos maiores pianistas poloneses da época do Holocausto: Wladyslaw Szpilman. Roman Polanski quis dar uma nova vestimenta ao tema, torná-lo mais sensível, mas não edificante, não propor análises maniqueístas, nem vitimizar quem foi vítima, o diretor apenas propõe uma nova visão a partir de um ser humano totalmente devastado pela guerra. O filme é repleto de referências a vida do diretor, mas ainda assim, o que está sendo contada é a história de Szpilman.
Como eu já disse, Szpilman no período entreguerras, se tornou um grande pianista de da Polônia, tocava na Rádio Polonesa, tinha um emprego satisfatório e uma família normal. Aparentemente, seu único defeito foi ter nascido judeu. Como todos já sabemos, veio a guerra, e em 1939, o exército nazista invadiu a Polônia. Primeiramente, o exército alemão criou os Guetos de Varsóvia, nesses locais eram colocados os judeus, para que assim, eles fossem devidamente separados da chamada raça pura, que continuava a circular livremente pelas ruas de Varsóvia. Nos guetos, é possível ver as tamanhas atrocidades que eram feitas (é tudo real, nada foi inventado ou transformado para sensibilizar o espectador), Szpilman vê a humilhação e a morte se alastrar sobre seu povo, sente na pele o que um homem é capaz de fazer ao outro. Seus pares eram mortos a rodo, tratados como gados, intoleráveis, mistificados e, sobretudo, degradados.
Szpilman passa a se esconder, já separado dos familiares e completamente sozinho. Passando fome e tocando piano na imaginação, o judeu vive passando por diversos esconderijos e por algumas situações um tanto inusitadas, como a cena do oficial nazista que o descobre e passa a protegê-lo em troca de pinceladas num piano velho encontrado numa casa entregue aos escombros. A relação mais importante do filme não se estabelece entre protagonista e piano. O piano tem papel imprescindível na obra, mas o filme não busca sentimento de edificação ou de superação através da arte. O instrumento e o talento de Szpilman se tornam uma válvula de escape, de fuga da realidade e de possíveis dias melhores, à medida que a desesperança toma conta do cenário desolador.
Quando digo da relação mais importante a ser estabelecida, é porque existe uma de fato. Na minha singela opinião, ela se encontra na relação personagem – espectador. Nós, humildes apreciadores da obra, só vemos os detalhes da guerra e a dimensão dela a partir dos olhos de um único personagem, personagem este, diga-se de passagem, que possui uma mobilidade muito prejudicada. Às vezes, vemos um soldado matando um judeu ou um menino fugindo dos assassinos, mas tudo o que vemos é a partir dos olhos da personagem Szpilman, é através de janelas, de buracos ou de frestas. O nosso único pesar é para com a personagem e não com toda a causa. E é aqui que o filme se diferencia de A Lista de Schindler, que tem uma visão muito mais ampla do que foi a guerra. Acho o filme de Spielberg fantástico, um dos melhores da década de 1990, mas é difícil negar a existência de certa manipulação imposta ao espectador em algumas passagens do filme.
A obra de Polanski possui muitos méritos: além do roteiro, temos a fotografia, a trilha sonora, o figurino, a reconstrução da época e seu ator principal. Poucos conhecem Adrien Brody, antes do filme então, era praticamente um ator invisível. Após 1400 testes, Polanski chegou até o ator nova-iorquino e pôde dar o presente que foi a atuação de Brody. Para que a gente tenha noção, ao longo das filmagens, Brody emagreceu 18 quilos para dar vida a Szpilman. Mas não é só o apelo físico que dá pontos ao ator. Sua composição de um homem dominado pela arte e perdido em meio a tanta perversidade é quase sobre-humana. Adrien Brody foi dono da melhor interpretação do ano e, por isso, levou o Oscar de Melhor Ator pela obra, assim como Polanski conquistou o de Melhor Diretor (não sei por que a Academia quis dar o Oscar de Melhor Filme para Chicago, mas enfim). No mais, a reconstrução da Varsóvia assolada pela Segunda Guerra é esplêndida e caminha para um realismo latente, assim como a fotografia crua e perversa na medida do possível.
E é isso que o filme de Polanski é: cru, perverso, fulgurante e (mesmo que sem a intenção) comovente. Acompanhar a difícil luta pela sobrevivência de uma vítima se torna uma experiência devastadora e vergonhosa ao mesmo tempo. A vergonha com um tempo de reflexão, torna-se reveladora e digerível, não pelos medos ou pelo tempo, mas pela ditadura da paz que faz com que acreditemos que o mundo não precisa de mais um desses momentos para saber do que nós somos capazes. Já que a guerra é uma invenção da humanidade, que esta invente a paz, pois, a guerra continua sendo apenas uma derrota para a humanidade.
“A arte diz o indizível; exprime o inexprimível, traduz o intraduzível.”
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