quarta-feira, 27 de julho de 2011

Mundo de Lá (Crítica: Os Incompreendidos / 1959)



Poucos já tiveram o prazer de saber o que é Cinema. Cinema puro, sensível, delicado e de qualidade inquestionável. Cinema este que revelou uma corrente de diretores e roteiristas talentosíssimos e com uma sede de trabalhar em prol da sétima arte. Esse é o movimento artístico denominado Nouvelle Vague, que surgiu na França no fim dos anos 1950. Podemos encarar o movimento francês como parte de uma cultura de contestação dos antigos valores que ia se erguendo nos anos de 1960, como a rebeldia dos jovens representada pelo rock and roll, a liberação sexual e econômica das mulheres, contextualizando, assim, o conhecido movimento feminista.

O Cinema não ficou atrás como pode ser visto e revisto com as obras cinematográficas do movimento. A Nouvelle Vague tem entre suas maiores características ir contra os moldes pré-estabelecidos pelo Cinema norte-americano. O diretor passa a ter mais liberdade ao trabalhar com a câmera, com o próprio tema da obra, já que era válida a exploração de temas tabus na época, a experimentação de novas linguagens cinematográficas, tornando a linearidade da narrativa algo não obrigatório.



Os cineastas da Nouvelle Vague são em sua maioria todos oriundos da crítica cinematográfica, trabalhavam na revista Cahiers Du Cinema. Cinéfilos eles já eram, e resolveram arriscar atrás das câmeras, trazendo um sopro de modernidade ao modo de fazer Cinema. Vale lembrar que inicialmente os recursos para fazer o filme saíam do bolso dos próprios cineastas e de seus familiares. Entre os grandes gênios que surgiram com a fundação da Nouvelle Vague podemos citar: Jean-Luc Godard, François Truffaut, Claude Chabrol, Eric Rhomer e Alain Resnais. Todos esses críticos e agora diretores tornaram-se mitos na história do Cinema Mundial.

No geral, com o novo movimento (que pode ser chamado de escola, embora os fundadores não apreciassem muito essa denominação) traz uma nova configuração ao representar o Homem nas telas. Não existe mais a representação simples de um romance por pura representação, agora existe um mergulho nas profundezas do psicológico do ser humano, festejando liberdade existencial do Homem, desde suas conquistas até suas práticas mais banais do cotidiano. E o Cinema como um todo só ganha com isso. Uma grande aquisição é a ruptura com o cinema totalmente filmado em estúdios. A humanização das práticas ganha cada vez mais espaço, trazendo para os espectadores a tão saborosa identificação com as personagens, com a história e com o mundo do cinema.

A Nouvelle Vague tem seu marco inicial com duas obras: Acossado (1959) de Godard e Os Incompreendidos (Les Quatre Cents Coups, França, 1959) de François Truffaut. Como os roteiros das duas obras pertencem a Tuffaut, ele foi considerado o grande nome do movimento. Os dois filmes estavam tocando na ferida da época: a revolução dos valores morais. Embora sejam obras que se enquadram num mesmo movimento e relativamente numa mesma temática, elas são bastante diferentes quanto ao público que se dirigem. Hoje a crítica é de Os Incompreendidos, o pequeno grande clássico de Truffaut.



Truffaut escolheu, em seu primeiro trabalho como cineasta, tentar desvendar o mundo de uma criança (12, 13 anos) que não se encaixa em nenhum lugar da sociedade, que pelo mesmo contingente é massacrado por não seguir uma constante em sua vida. Segundo alguns críticos, o personagem principal da obra Antoine Doinel é o alter-ego do diretor. Truffaut também nasceu no seio de uma família pobre que não se sustentava emocionalmente, desprezado pela mãe e pelo padrasto, Truffaut viveu nas ruas de Paris, cometeu pequenos furtos e chegou a ficar durante um tempo num reformatório. Truffaut buscou na sua própria história e na construção de Antoine uma visão compreensiva sobre o mundo de um jovem incompreendido pelos adultos. Por esse motivo, pela intenção do cineasta, acho o título nacional bem mais feliz que o francês, que numa tradução ao pé da letra seria como “pintando o sete”, o que dá um aspecto muito cômico a história. Realmente a história é repleta de momentos cômicos, mas acredito que o título nacional sugere uma amplitude muito maior quanto ao que o diretor realmente foi buscar ao rodar esse filme. É cômico, engraçado, sensível, delicado, inteligente, fascinante, biográfico. É lindo.

Antoine Doinel (Jean-Pierre Leáud, um marco) é um garoto que tem, aparentemente, seus 13 ou 14 anos. Vive na efervescência de Paris totalmente jogado aos tubarões. O padrasto volta e meia parece gostar do garoto, mas também é impaciente, não tem um diálogo considerável com o filho. A mãe (tão cabível à época: é a mulher entrando no mercado de trabalho, mas ainda insegura e, por isso, busca no adultério uma estrutura mais forte), flagrada pelo menino num ato de adultério, chantageia o garoto em prol de suas intenções, pisa na sua infância, tornando-se uma verdadeira megera em dado momento do filme. Na escola o garoto também não se encaixa, o professor é o verdadeiro carrasco da vida de Antoine.



Antoine não é um garoto bom nem mal, é simplesmente um garoto, com todos seus defeitos e tímidas qualidades, uma criança que aprendeu na rua o que supostamente é certo e o que é errado. Depois de tantos problemas na escola, e a difícil compreensão dos motivos por parte dos pais, Antoine parte para a rua, começa a cometer pequenos furtos, até ir parar num reformatório.

O carinho com que Truffaut trata a personagem é emocionante. Sem abandonar o tom naturalista, Truffaut constrói uma criança adorável, mesmo em seus erros gritantes, mas nunca, nunca mesmo, cheguei a pensar que ele podia se prostrar diante dos pais ou da autoridade de seu professor. Criamos um laço afetivo tão grande com a personagem que ele arranca risos e lágrimas discretas de nós espectadores de uma maneira muito fácil, isso é mérito do diretor, mérito desse amor entre diretor e personagem. Ressalto também que Truffaut levou a personagem para mais cinco filmes seus tamanha era sua identificação com Antoine.



A obra tem momentos cômicos e momentos extremamente sensíveis. Vale lembrar como cômico o momento em que o professor sai com os alunos por Paris numa fila indiana e um a um os alunos vão se infiltrando nos becos e prédios da cidade, numa fuga hilária do professor ditador. De cenas sensíveis, a obra é repleta. Desde a identificação da personagem com Honoré de Balzac (e o massacre feito sobre essa identificação) e a belíssima cena final, em que o garoto, correndo numa praia, para e encara a câmera. Um dos finais mais delicados e explosivos que já vi.

O resultado final é uma obra única, o herói, tão visto nos filmes convencionais, aqui é um anti-herói. Truffaut não transforma Antoine num humano digno de pena nem num garoto digno de desprezo. Transforma o garoto num problema simples. Assim, em nenhum momento a obra parece ser piegas ou extremamente melodramática. É um filme como nenhum outro, difícil de criticar, mas fácil de apaixonar-se. Truffaut dá suposta margem à entrada do menino à marginalidade sem conseqüências e sem razão, leva o menino até o ponto em que ele (Truffaut quando criança) parece que conseguiu escapar. Ninguém sabe o que vai ser de Antoine, mas todos sabem o que foi Truffaut.

4 comentários:

  1. Ótima percepção, Gustavo!

    Não é surpreendente ver que você possui uma habilidade ótima de desenvolver longas observações com fundamento.

    Gostaria de acrescentar que "Nas garras do vício" de Claude Chabrol também é considerado outra grande obra que marcou o início deste grandioso movimento francês.

    E, claro, adorei o seu desfecho "Ninguém sabe o que vai ser de Antoine...", senão lírico, poético... Só que no sentido figurado e lúdico da coisa até é possível saber mais sobre a vida deste alterego. E como? Pelos filmes que Truffaut mais tarde realizou prolongando a vivência do personagem. Conhece? Já vi todos e recomendo! Fiz até a boa ação de passar eles à Patrícia. (risos)

    São eles:

    CURTA-METRAGEM: Antoine et Colette (1962)

    Namoricos de Antoine aos 17 anos.

    Baisers Volés (1968)

    Depois de servir ao exército, Antoine descobre o que há junto das relações amorosas.

    Domicile Conjugal (1970)

    Antoine casado. Meu predileto! Ecoa Bergman!

    L'Amour en Fuite (1979)

    O último filme, que exibe imagens dos melhores momentos dos filmes anteriores. Mostra Antoine depois dos seus 30 anos e vivendo ainda com a mesma impulsividade caricata de sua infância. Pergunto-me se seria isso então que Truffaut vivia nos seus momentos de criação ou se depois de um certo ponto a criação do personagem se tornou fictícia... Enfim!


    ...O mais notável de tudo isso é perceber a evolução de Jean-Pierre Léaud como ator!

    Continue com o bom trabalho,
    Abraços!

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  2. LINDO, Guzinho.

    Consegui ver o filme todo quando estava em Pinda, e me apaixonei pelo trabalho do diretor e do ator.
    Espero que consigamos ver juntos os outros filmes!


    Um beijão!

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  3. Poxa Syl.
    Muito Obrigado pelos elogios, tenho certeza que você é a pessoa mais indicada (que eu conheço) para falar de Nouvelle Vague, sinto-me até um pouco noob hahaha. Obrigado mesmo.
    um Beijo End, valeu por sempre comentar!!

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  4. Linda postagem, como sempre! =)
    Filme maravilhoso, desde que o Syl me contou que havia continuação, fiquei louca para assistir!
    Ainda não tive a oportunidade, mas tenho certeza de que estas não faltarão!
    Beijão, Guzinho! s2

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