"E com isso cortei também a minha força. Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você, sobretudo o que imagina que é ruim em você - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse seu único meio de viver (...)
Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo o que sua vida exige (...)
Gostaria mesmo que você me visse e assistisse minha vida sem eu saber. Ver o que pode suceder quando se pactua com a comodidade da alma".
Clarice Lispector
Se existe uma coisa que os filmes indicados ao Oscar 2013 realmente não conseguiram foi unanimidade, e aqui eu quero dizer, claro, que nem algo próximo a isso foi visto. Pudemos ver, por exemplo, Os Miseráveis agradar muita gente e, ao mesmo tempo, ser regurgitado por outra grande parcela dos espectadores. Prova disso é que o mesmo aconteceu com Lincoln, As Aventuras de Pi, Argo (
Indomável Sonhadora (Beasts of the Southern Wild, EUA. 2012) mergulha num universo de magia e instintos humanos, tornando-se severamente contemplativo, daí, talvez, venha a sua condição de não agradar a todos: o filme em nenhum momento é auto-explicativo, pelo contrário, exige do público comprometimento e um coração sensível pronto para navegar na precária zona de mangue de Nova Orleans, onde se passa a história da roteirista Lucy Alibar e do diretor Benh Zeitlin.
A fita se passa num lugar denominado "A Banheira", uma ilha no meio de uma barragem, que após a passagem do furacão Katrina fica totalmente inundada e praticamente inabitável. Nesse lugar, cresce de forma instintiva a pequena Hushpuppy (Quvenzhané Wallis). Embora a menina viva com o pai (Dwight Henry), este não se mostra um perfeito educador, delegando a filha mais força e garra do que uma criança na idade dela deveria ter. O ponto alto e central do filme fica mesmo na relação de interdependência entre a menina e o pai, que arrasado numa doença silenciosa, desconstrói a imagem do pai protetor visando o crescimento do instinto de sobrevivência da filha.
Zeitlin responde de forma muito bela em seu primeiro longa. A fotografia iluminada preenche o mundo fantástico de Hushpuppy, a trilha sonora é carinhosamente trabalhada na emoção das personagens, sem contar a linda câmera que se movimenta como se lutasse contra um naufrágio, buscando sempre na presença de sua protagonista o suspiro seguinte.
A grande beleza de indomável Sonhadora revela-se na construção conquistadora do mundo de Hushpuppy. A mente que briga animais fantásticos, que fogem de algum dos extremos do planeta para encontrar a menina ali naquele cenário desolador, também é a mente guerreira de uma comunidade toda, que ás margens da sociedade, vai alongando o tempo de vida naquela região perigosa. Hushpuppy é o símbolo de um ideal comum àquelas famílias: Ser do lugar que te pertence. A concretização da figura da menina com símbolo se dá principalmente pela força eloquente do pai, que sem a figura da mãe desaparecida, vai injetando em Hushpuppy os mais diferentes instintos animais, provocando uma agigantamento impressionante da menina, que tem também na narração o seu principal veículo de convencimento do público. Basicamente, quem vê na garotinha a chance de controlar esses instintos de sobrevivência, dá com os burros n'água. Hushpuppy é blindada, uma fusão de inocência e força bruta.
Quvenzhané Wallis, indicada ao Oscar de Melhor Atriz, é uma real força da natureza. A pequena garota de sotaque sulista destacado, gera no espectador momentos de puro desarme, onde as limitações de cada um passam a ser ultrapassadas e a revelação de uma nova pessoa pode acontecer. Wallis preenche a tela com a natureza de sua imagem e interpretação, reserva para sua personagem cada espaço vazio, cada sensação desconfortável, cada nova esperança de dias melhores. Um brinde e muita saúde à menina Wallis.
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