terça-feira, 31 de maio de 2011

A Marcha de la Tyrannie (Crítica: V de Vingança / 2006)



O povo não deve temer seus governantes. Os governantes que deveriam temer o povo.

Já é mais do que escancarada minha paixão pela atriz Natalie Portman, dentre os poucos posts do Cinemática Br, esse já é o terceiro que traz a atriz israelense. Não escolhi esse filme simplesmente por trazer Portman. Escolhi porque se trata de uma obra espetacular, visionária (ou nostálgica, aí depende do seu ponto de vista) e completa, embora cometa alguns exageros em certas partes.

V de Vingança (V for Vendetta, 2006. EUA) é baseado nos quadrinhos de Alan Moore e David Lloyd, que foram publicados na Inglaterra durante a década de 1980 e no livro 1984 de George Orwell, escrito em 1948. Podemos dizer que tudo é adaptado de uma adaptação. É complicada essa história de adaptar quadrinhos para o Cinema, justamente porque os leitores de quadrinhos são aqueles mais fervorosos e “nerds” (com o perdão da palavra) possíveis. Eles querem ver uma adaptação fiel ao extremo, coisa que sabemos que não é possível, não tem como mesmo (imagine um filme sem sentido com 6 ou 7 horas de duração, definitivamente não rola) e quando essa fidelidade não se torna real eles se rebelam, organizam-se na frente da produtora e aí é aquele inferno. Basta entender que cinema não é igual a nada, nem a TV ou teatro, e muito menos a Literatura. No caso de V de Vingança, em que o autor dos quadrinhos Alan Moore se recusou a ter seu nome nos créditos finais, devido a essa “falta de fidelidade”, a história é muito melhor que os quadrinhos, já que prefere um roteiro bem mais simplificado que o original.



O diretor James McTeigue (que até então só tinha se aventurado em co-direções) e os Irmãos Wachowski (trilogia Matrix – e que assinaram o roteiro de V de Vingança) optaram por uma direção e um roteiro mais simples, mais deficiente de personagens, em que tudo o que fosse apresentado na tela, seria profundamente desvendado. Assim, não encontraríamos tantos personagens rasos durante a película. Porém, o espírito libertário (que é o que torna o trabalho fiel aos quadrinhos de Alan Moore) é mantido e, ainda, revigorado.

Alan Moore escreveu os quadrinhos na época em que Magaret Tchatcher comandava a Inglaterra. Moore profetizou que o domínio rude de Tchatcher (ela tinha o apelido de “mão de ferro”) fosse levar a Inglaterra a um regime totalitário, quase que uma Alemanha nazista, em que homossexuais e negros seriam presos e proibidos de se misturar a uma chamada “raça pura”, todos os direitos humanos contestados e, assim, em nome da moral e dos bons costumes o mundo seria mais uma vez condenado. O que Moore não previu é que o conservadorismo inglês cairia com a eleição de Tony Blair ao posto de primeiro-ministro britânico. Mas, em algumas coisas ele acertou (HÁHÁ, espaço para minha risada macabra): o modo de agir de alguns terroristas, quando insatisfeitos com a forma de governo que rege seu país (ou sistema), e, assim, para mandar um recado para esses governantes, atacam símbolos de poder daquela pátria (no caso do filme é o Parlamento que explode, e se você pensou no Pentágono ou no World Trade Center, como forma de aludir ao mundo real, parabéns). E é por isso que a história de Moore é tão pertinente ao Cinema e à reflexão da sociedade



V de Vingança tem um pouco de tudo- romance, crítica social, política, suspense, ação, aventura – e tudo extremamente bem dosado. Alguns exageros se deverão, mais para o final do filme, aos efeitos especiais, mas mesmo assim, não comprometem tanto o filme.

Tentando resumir um pouco a história do filme, a trama se passa num futuro próximo, em que a Inglaterra tenta se reerguer novamente como uma potência global. Porém, o governo inglês é absolutista e corrupto. O líder do Parlamento Inglês (interpretado pelo veterano John Hurt) é conhecido como Chanceler, cargo que ocupava o nada saudoso Adolf Hitler, as cores que representam o governo também aludem ao Nazismo (preto e vermelho). Os meios de comunicação são dominados pelo Estado, a liberdade de expressão totalmente vetada, enfim, características de uma ditadura. Nesse contexto, aparece a figura de V (Hugo Weaving, o vilão de Matriz, que nem por um segundo enfrenta as câmeras sem máscara), uma espécie se super-heroi mascarado, determinado em eliminar esse regime fascista que domina a Inglaterra. É um heroi dos mais estranhos, culto e sensível e contará com a ajuda de Evey (a musa Natalie Portman), uma funcionária da televisão inglesa, com um amargo passado, e que foi salva por V das mãos dos policiais tiranos. Evey será a parceira na empreitada de V: explodir o prédio do Parlamento britânico.



Destruir um prédio fará desse mundo um lugar melhor? Perguntou Evey

V, imóvel, respondeu: Um prédio é um símbolo. Destruí-lo também.


É nítida a referência que os Irmãos Wachowski fazem ao 11 de setembro. Data que Osama Bin Laden ordenou os ataques terroristas ao país mais poderoso do mundo. O filme é cheio dessas referências. Mas cabe a você julgá-las. Osama Bin Laden comparado a V. Dois terroristas ou dois militantes em defesa da liberdade? Atos terroristas são constantemente atribuídos a defesa da liberdade. Isso é válido? Só estando na pele de um ser massacrado pelo sistema pra ter uma resposta concreta.

James McTeigue nem parece ser um estreante. Parece um veterano de guerra. Imprime agilidade e profundidade absurdas ao filme, é difícil se entregar a vontade de ir ao banheiro no meio do filme. Não dá vontade de tirar o olho. Hugo Weaving que tem que interpretar o personagem principal só a base de expressões corporais dá um show a parte. Natalie Portman se supera mais uma vez ao interpretar essa militante de garra, que sofre demais devido ao passado obscuro da personagem (a atriz raspou a cabeça em dado momento do filme). Vale ressaltar também o trabalho dos outros atores: Stephen Rea e Stephen Fry. A fotografia e a maquiagem do filme impõem um tom muito sombrio aos cenários, dá pra ver o medo pairando sobre Londres.



Taxado por uns como “subversivo”, V de Vingança é um filme, acima de tudo, inteligente. Não há como fugir da verve política mesmo, mas encontraremos dentro de nós mesmos um pedacinho do V, que luta contra essas injustiças que perduram na sociedade. Atente também para a cena da Marcha do Vs, é de arrepiar até o último fio de cabelo.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Não assistirás ao fim que tu causaste. (Crítica: Carrie - A Estranha / 1976)

Restabelecer o que nunca foi estabelecido.

Reaprender o que nunca foi aprendido.

Sussurrar o que nunca foi dito.

Quem é você no mundo? Isso, aquilo ou nada disso?

Quem segue do teu lado?

Quem você sente do teu lado? (e isso se resume num infinito superior a qualquer um milhão de palavras que possam te dizer).

Pena que ninguém disse nada a ela. Só fez com que ela sentisse que tudo era mentira e perverso.

Morre assim, então.



O que um filme de terror pode fazer num indivíduo? A mim pode subverter toda a ideia do que ele é e me mostrar o que REALMENTE ele é. E é isso o que ocorre em Carrie – A Estranha (Carrie, 1976. EUA). O filme que foi adaptado do livro de Stephen King tem em sua essência pura o horror, a vingança e o sangue, mas trata-se de um mundo a mais de coisas.

Carrie foi o primeiro livro escrito por Stephen King e quase não foi publicado devido a um surto do autor, que jogou todo o material no lixo, por sorte sua esposa resgatou o trabalho e então o livro foi publicado em 1974. Este também foi o primeiro livro do autor que ganhou uma adaptação cinematográfica.



Em 1975, o diretor Brian de Palma (início da carreira) resolveu adaptar o livro de King para o cinema. Tinha em mente seguir todo o livro de forma fiel, assim o filme seria só o meio visual de se entender o livro. Porém, Brian de Palma fez muito mais que isso, fez simplesmente um clássico do cinema mundial. Transformou uma história repleta de clichês num dos filmes mais vistos e comentados da história. Quem nunca ouviu falar de Carrie? Carrie sempre é relembrado quando o” bullying” entra nas discussões sociais e novelas brasileiras fazem, até hoje, cenas aludindo à obra.

Contar Carrie é como contar a história de milhões de pessoas do mundo, é comum encontrar gente que sofra que nem ela (mesmo sem os agravantes que essa jovem tem).

Carrie é uma jovem do ensino médio que nunca foi aceita por nenhum grupo ou indivíduo da sua escola, acredito que até da cidade. É aquela menina que ninguém passa a bola na educação física, que é tratada como um móvel dentro da sala de aula e sofre tudo isso calada. Não tem estrutura nenhuma pra se impor diante dessas pessoas e dessas situações. Todos os problemas de Carrie são agravados pela mãe (Piper Laurie, que faz uma mãe de arrepiar até o último fio de cabelo), uma fanática religiosa, que foi abandonada pelo marido e nunca aceitou Carrie como sendo fruto de um casamento, mas tem como certo que a filha é fruto do pecado, da entrada do demônio no seu corpo. Pra completar, Carrie tem poderes psíquicos que ela não consegue controlar em momentos de extrema fúria, a mãe tem consciência dos poderes e acredita que a filha é dominada pelos poderes do mal.



Na minha humilde opinião, a mãe é o maior problema na vida de Carrie. A jovem é mantida isolada do mundo, isolada das pessoas e ainda bombardeada por questões que vão além de seu poder de resolução. A mãe nunca contou à filha que uma menina menstruava (essa cena é de cortar o coração), tanto é que quando menstrua, Carrie acredita que está morrendo. As meninas da escola também são cruéis e perversas, são aquelas pessoas que matam outras indiretamente nos dias de hoje. Matam sonhos e planos. Sufocam o que um dia poderia ser uma linda vida a ser vivida.



Sissy Spacek (indicada ao Oscar de Melhor Atriz pelo filme) está em seu primeiro trabalho no cinema, e faz Carrie da forma mais brilhante possível. Amedronta-me no olhar, entristece-me nos mesmos olhos e me ganha, ainda, com esses mesmos olhos. Os Olhos. Ah os olhos!! Os olhos de Sissy Spacek merecem uma poesia.

Preferia mil vezes que o filme fosse de terror mesmo, pelo menos blindaria minha alma e meu coração contra o sofrimento de Carrie. Não é brincadeira o que essa menina sofre e o que tanta gente ainda sofre calada nos dias de hoje. Numa das últimas sequências do filme (talvez a penúltima, a do baile), toda essa blindagem que você tiver usando, caso ainda esteja, cairá por terra. Não tem como não querer pegar Carrie no colo e dar a ela todo o carinho que lhe negaram durante uma vida inteira. Toda a amizade que lhe privaram.



Os poderes paranormais que foram impressos na personagem é, de fato, só uma desculpa para o filme ser de terror. O filme é muito mais que isso. É uma abordagem repleta de lugares-comuns da vida de uma jovem que sofre bullying. Quer coisa mais natural que isso? Quem nunca viu um colega praticar bullying e deu uma gargalhada gostosa da cara daquele cidadão que estava sendo rechaçado na frente de todo mundo?

Mas isso é um blog de Cinema, desculpem-me.

A obra também merece ser lembrada por uma série de questões: a montagem, que é magnífica e trás uma série de cenas muito bem construídas, com ângulos diferenciados, com divisão da tela pra mostrar causa e efeito da cena; a fotografia, assustadoramente linda do instante em que Carrie toma um banho de sangue em diante e; trilha sonora, que lembra um pouco Psicose e dá todo um clima muito legal ao filme.

No geral. Carrie não tem segredos, trata-se de uma obra única que consegue ser de 25 anos atrás e mesmo assim tratar de um assunto tão contemporâneo. O final é um espetáculo a parte, que não merece que eu diga uma palavra sequer, afinal, posso fazer alguma injustiça.



Dedico o post aos amigos que assistiram ao filme comigo: Pedro Inácio, Stephanne, Léo (que dormiu o filme inteiro), End (que riu boa parte do filme), Adriano (dono do filme) e Ian.

(ahh.. não assistam a refilmagem, é uma merda!!)

terça-feira, 17 de maio de 2011

A Maçã Envenenada (Crítica: Dogville / 2003)



Inovar. Desafiar convenções.

É tão bom quando encontramos um filme e nos deparamos com uma proposta tão inovadora e arriscada, que dá certo e no fim de tudo só imprime qualidade e legitimidade a tal obra. Pois é, existe uma série de filmes com esses pré-requisitos, os melhores para mim (que não são do David Lynch) seriam Clube da Luta (1999) e Dogville.

Hoje resolvi falar de Dogville (2003. Dinamarca) do diretor dinamarquês Lars von Trier. Para quem não conhece, Von Trier é um dos mais geniais diretores da atual safra. Responsável por obras complexas, fortes e, principalmente, reflexivas. Mas reflexivas não no sentido individual, e sim no geral, nos faz pensar como sociedade, talvez por isso seus filmes recebam críticas tão duras e às vezes são ignorados pelo grande público. Mas o que seria do cinema se não houvesse o “pequeno público”: homens aranhas e comédias pastelões? Adam Sandler ao invés de Robert de Niro? Anna Faris no lugar de Susan Sarandon?



Lars Von Trier é o criador do “Dogma 95”, uma espécie de cartilha em que um conjunto de regras determina como deve ser criado um filme, entre elas: ausência de cenário, utilização de som e iluminação naturais, câmera de mão. Opõe-se a idéia de autor, de cinema individual e efeitos especiais. Parece loucura, eu sei. Porém, Dogville não pode ser considerado uma obra que segue genuinamente os precedentes desse movimento dinamarquês, já que utiliza iluminação artificial, existe diretor de fotografia, entre outras coisas, mas o radicalismo de Dogville lembra algumas ousadas experiências do movimento.

A intenção do diretor era criar uma trilogia sobre os Estados Unidos (a segunda parte inclusive já foi lançada com o título “Manderlay”). Curiosamente, Lars Von Trier nunca esteve nos Estados Unidos e é sempre rotulado como um anti-americano. Por isso, seus filmes nunca obtiveram sucesso em território americano.



Mas vamos ao que interessa.

Dogville é uma cidade no meio das montanhas dos Estados Unidos e que possui um pouco mais de 15 habitantes(você não entendeu errado, são 15 habitantes). A história se passa durante a Grande Depressão americana na década de 1930 e gira em torno de Grace (Nicole Kidman, linda e num dos melhores papéis de sua carreira, a conhecida "belle epoque" da atriz), uma mulher que está fugindo de gângsteres e encontra abrigo em Dogville. Calma, não entenda esse abrigo tão ao pé da letra assim.

Encantado com a moça, o jovem Tom (Paul Bettany) propõe aos moradores que Dogville sirva de refúgio para Grace que, em troca, faria pequenos serviços a comunidade (já que a população estava temerosa com a possibilidade do aparecimento dos gangsteres na minúscula cidade) e através de um plebiscito, os moradores aprovam a permanência de Grace entre eles. Só que o negócio começa a ficar sério e a polícia começa a bater às portas de Dogville atrás de Grace (no final do filme você entenderá porque a polícia), e a população, que até então tinha se mostrado amorosa para com a jovem, começa a explorá-la cada vez mais, para que assim eles pudessem escondê-la. Inicia-se um misto de chantagem e interesse em cima de Grace.

Grace faz de tudo na cidade, desde dar aulas na escola e trabalhar no cultivo das maçãs até satisfazer um velho sexualmente. Exploração parece uma palavra amena perto do que essa mulher sofre, porque além de tudo isso ela tem que se preocupar em fugir de quem a persegue fora dali. Escravidão define melhor a condição de Grace, ela se torna prisioneira da cidade e passa a usar correntes após sua primeira tentativa de fuga.



Quando disse no começo do post em DESAFIAR CONVENÇÕES, estou me referindo principalmente ao cenário do filme, que, aliás, não existe. Todo o espaço que representa a cidade é marcado com giz no chão, delimitando as casas, a Igreja, as macieiras e todo o resto. Minimalista, o diretor só fez uso de alguns objetos de cena, a ausência de cenários permite que o espectador veja os coadjuvantes em suas práticas rotineiras e totalmente desfocados da cena principal que ocorre no primeiro plano da imagem. Isso é magnífico e dá um grau de complexidade absurdo ao filme, pois atentar aos codjuvantes fora da cena é essencial ao entendimento da obra

Tirando o cenário do foco, o diretor conseguiu que o espectador prestasse atenção naquilo que ele realmente quer mostrar no filme: “a desumanidade que brota da humanidade”.



Os coadjuvantes do filme representam essa tal desumanidade, exclui-se daí apenas o personagem de Paul Bettany, que apesar de DIZER amar Grace, ele é um homem passivo e frouxo, de discursos vagos e metido a intelectual, que não consegue enfrentar os moradores em prol da "amada". É aqui que a esperança que Grace tinha na humanidade começa a se esfacelar, já que Tom é o único ser humano que ela confia. Eu particularmente achei Tom o personagem mais interessante da obra, tem nuances de aproveitador sexual barato que se mesclam com um gênio introvertido. O resto do time de coadjuvantes (brilhantes por sinal: Stellan Skarsgaard, Lauren Baccall, Patricia Clarkson, Philip Baker Hall e Chloe Sevigny) representam o sofrimento de Grace, que vão desde orgulho, avareza, vaidade, preguiça, luxúria e inveja.
O que Grace vive é uma verdadeira Odisséia. Nicole Kidman é sofrimento a flor da pele. É lindo de ver ela trabalhando tão bem.

O filme é uma crítica ferrenha à sociedade estadunidense. Uma crítica a essa potência que o ser humano tem em ser vil, hipócrita e mesquinho, um individualista conservador e possessivo. Lars Von Trier costura isso de maneira tão perfeita que resta-nos apenas o recolhimento e a reflexão (provavelmente) negativa do que é a sociedade. No final do filme essa crítica fica mais clara a partir da música de David Bowie e das decisões tomadas por Grace, que culminam num final trágico.



O filme é sublime. Não só por inovar, quebrar convenções, mas por tratar de um tema tão complicado (às vezes parece que estão apontando um dedo na nossa cara, mesmo que de forma branda) de uma maneira bem natural. Os atores tiveram que se esforçar e dar o máximo de seu potencial, pois gravaram todas as cenas em cima de um tablado, ou seja, exigia experiência em teatro.



Quanto vale a minha dignidade? QUANTO VALE A DIGNIDADE DO PRÓXIMO?

Lars Von Trier apresenta uma percepção da sociedade onde impera o cinismo, a mentira e a naturalização da maldade. E acima de tudo consegue manter nossas cabeças ocupadas por um bom tempo após o filme.

Dogville é uma síntese espetacular da humanidade frente aos seus objetivos, percepções e interesses.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Ventos da Liberdade (Crítica: Na Natureza Selvagem / 2008)




A felicidade só é verdadeira se for compartilhada.
(Christopher McCandless)

Sean Penn é para mim um dos melhores atores ainda em exercício na profissão. Entende do que faz, e além de tudo, trilha caminhos complexos e improváveis dentro da carreira. É com todo esse mérito que esse cara resolveu navegar por águas diferentes, tortuosas e, assim, mostrar também seu enorme talento como diretor e roteirista.

Dos poucos filmes que dirigiu, sem dúvida, Na Natureza Selvagem (Into the Wild, 2008. EUA) é o que mais se destaca. Não é um filme fácil de resenhar, nem mesmo de discutir numa roda de amigos, mesmo que bêbados. A história pode ser simples, mas tudo o que acarreta e todas as motivações dela são incertas, confusas e podem gerar atrito de opiniões. Por mais que você não concorde com os motivos, não há como discordar da beleza dessa obra.



Na Natureza Selvagem é adaptado do livro de Jon Krakauer (recebe o mesmo título), que conta a história de Chris McCandless, um jovem de 22 anos, que após a faculdade larga tudo para viver uma aventura pelos Estados Unidos. Talvez a palavra “aventura” não caia bem ao que o filme propõe, mas no fim é isso: uma aventura, tanto exterior quanto interior.

McCandless fazia parte simplesmente da nata norte-americana. Vem de família rica, sempre estudou nos melhores colégios e tinha acabado de se formar na faculdade, ou seja, ele estava com a vida encaminhada. Mas estava faltando alguma coisa. Chris larga tudo (reprovado pelos pais) e resolve atravessar boa parte do país para tentar viver durante um tempo no Alasca, o lugar que ele supunha ser o mais selvagem de todos, onde a natureza exalaria sua essência mais pura. Com apenas uma mochila, alguns pertences e pouco dinheiro o jovem parte com destino à sua “aventura”.

Durante sua jornada de dois anos, Chris liberta-se da sua própria identidade e assume um novo nome: Alexander Supertramp, que ele vai deixando marcado, entalhado por todo lugar que passa. Ele queria ser parte daquela natureza. Ele queria esquecer o que ele foi.




30% da beleza do filme está na história e nas atuações de seus coadjuvantes, as pessoas que Alex (agora o chamarei pelos dois nomes) vai conhecendo durante o trajeto até o Alasca. Seja o casal de hippies que lhe deu carona, onde ele estabelece com a personagem de Catherine Keener uma relação de cumplicidade que até então ele nunca havia conseguido estabelecer com seus pais. Ou o picareta vivido pelo comediante Vince Vaughn (extremamente carismático). Em todos seus encontros, Alex terá suas conclusões e definições sobre o que são relações humanas contestadas. Cada encontro é uma nova aquisição, tanto para ele quanto para quem ele encontra no caminho.



Aqui entram os motivos pelos quais Alex resolveu deixar sua casa. Alex está cansado de todo o consumismo que o cerca, da sociedade pós-moderna e suas futilidades e crenças e desacreditado do potencial humano em amar e preservar, sejam sentimentos ou até mesmo a natureza, que é onde ele vai buscar respostas (ou talvez fugir delas), para tentar viver em harmonia com o mundo, com os animais e consigo mesmo. Pode-se dizer que a viagem de Supertramp trata-se de uma auto-descoberta. Supertramp é daqueles caras que os olhos se enchem de lágrima ao ver uma lebre buscando comida, ou cavalos correndo sem rumo. É um amante do sentimento, da vida. É um idealista. Um subversivo da ordem vigente, mesmo que tímido.

O coadjuvante mais estarrecedor é com certeza o veterano Hal Holbrook, que interpreta um veterano de guerra solitário e que praticamente desistiu de viver e através da figura de Supertramp vai conhecer um novo lado da vida: aquele que não existe limitações. É sublime a cena em que o senhor de mais de 80 anos escala uma montanha diante das provocações do jovem Alex já no topo do morro. O filme ainda traz a beleza juvenil de Kristen Stewart, que se apaixona pelo espírito aventureiro do jovem McCandless, e Marcia Gay-Harden e William Hurt, interpretando os pais de McCandless, que são pura emoção.



Os outros 30% se devem ao fato simples (na verdade, nem um pouco simples) do ator Emile Hirsh, intérprete do protagonista, mergulhar no papel e fazê-lo de forma tão visceral e verdadeira. No final da obra, o ator está tão magro, que chega a ser assustador. É fantástico ver tamanha entrega. Foi sim, uma grata surpresa.

10% fica para fotografia da obra, que se destaca muito ao colocar o protagonista em proporções naturais em meio a natureza. Sean Penn quis inserir nas filmagens todos os cartões postais do desconhecido Alasca. As imagens vão de montanhas congeladas e florestas temperadas até desertos.

Os 30% restantes tenho que oferecer a sublime trilha sonora folk do filme. Composta por Eddie Vedder, líder da banda Pearl Jam, a trilha é talvez o melhor do filme, pois ela embala cada momento de solidão do protagonista com tanta precisão que chega a arrepiar. É genial e essencial para o entendimento do personagem.

A estrutura narrativa do filme também é sensacional. O filme é cortado por narrações da irmã de McCandless (Jena Malone), que é o que dá base para voltar no passado do protagonista, junto com isso vem a divisão da obra em capítulos: como por exemplo quando Chris decidi dar início a sua aventura, o capítulo é “Nascimento”, e quando chega ao auge de sua aventura chama-se “Sabedoria”, já como Supertramp. O diretor alterna flashbacks da vida do protagonista com cenas da aventura no Alasca (onde estão as melhores cenas de Hirsh, principalmente dentro do "ônibus mágico") promovendo um verdadeiro show de técnicas cinematográficas.



Esse é Christopher McCandless, um cara que realmente existiu e que não conseguia viver no meio de regras impostas, numa família infeliz e hipócrita. E o mérito do filme é esse, conseguir mostrar que o protagonista vai além de um mero maluco anti-social, e isso se dá graças às relações que o protagonista foi criando ao longo de sua jornada, dando profundidade ao personagem.

O filme apresenta uma história verídica, comovente e que gera muita reflexão sobre o quanto podemos levar uma vida insignificante se não soubermos como vivê-la. Muitos enxergam Chris McCandless como um herói, mas é irônico que um herói tenha que ter um fim tão trágico principalmente por se tratar de um jovem que seguia seus princípios morais e tinha uma paixão imensurável pela vida.

E Chris só estava em busca dele mesmo.