terça-feira, 17 de maio de 2011

A Maçã Envenenada (Crítica: Dogville / 2003)



Inovar. Desafiar convenções.

É tão bom quando encontramos um filme e nos deparamos com uma proposta tão inovadora e arriscada, que dá certo e no fim de tudo só imprime qualidade e legitimidade a tal obra. Pois é, existe uma série de filmes com esses pré-requisitos, os melhores para mim (que não são do David Lynch) seriam Clube da Luta (1999) e Dogville.

Hoje resolvi falar de Dogville (2003. Dinamarca) do diretor dinamarquês Lars von Trier. Para quem não conhece, Von Trier é um dos mais geniais diretores da atual safra. Responsável por obras complexas, fortes e, principalmente, reflexivas. Mas reflexivas não no sentido individual, e sim no geral, nos faz pensar como sociedade, talvez por isso seus filmes recebam críticas tão duras e às vezes são ignorados pelo grande público. Mas o que seria do cinema se não houvesse o “pequeno público”: homens aranhas e comédias pastelões? Adam Sandler ao invés de Robert de Niro? Anna Faris no lugar de Susan Sarandon?



Lars Von Trier é o criador do “Dogma 95”, uma espécie de cartilha em que um conjunto de regras determina como deve ser criado um filme, entre elas: ausência de cenário, utilização de som e iluminação naturais, câmera de mão. Opõe-se a idéia de autor, de cinema individual e efeitos especiais. Parece loucura, eu sei. Porém, Dogville não pode ser considerado uma obra que segue genuinamente os precedentes desse movimento dinamarquês, já que utiliza iluminação artificial, existe diretor de fotografia, entre outras coisas, mas o radicalismo de Dogville lembra algumas ousadas experiências do movimento.

A intenção do diretor era criar uma trilogia sobre os Estados Unidos (a segunda parte inclusive já foi lançada com o título “Manderlay”). Curiosamente, Lars Von Trier nunca esteve nos Estados Unidos e é sempre rotulado como um anti-americano. Por isso, seus filmes nunca obtiveram sucesso em território americano.



Mas vamos ao que interessa.

Dogville é uma cidade no meio das montanhas dos Estados Unidos e que possui um pouco mais de 15 habitantes(você não entendeu errado, são 15 habitantes). A história se passa durante a Grande Depressão americana na década de 1930 e gira em torno de Grace (Nicole Kidman, linda e num dos melhores papéis de sua carreira, a conhecida "belle epoque" da atriz), uma mulher que está fugindo de gângsteres e encontra abrigo em Dogville. Calma, não entenda esse abrigo tão ao pé da letra assim.

Encantado com a moça, o jovem Tom (Paul Bettany) propõe aos moradores que Dogville sirva de refúgio para Grace que, em troca, faria pequenos serviços a comunidade (já que a população estava temerosa com a possibilidade do aparecimento dos gangsteres na minúscula cidade) e através de um plebiscito, os moradores aprovam a permanência de Grace entre eles. Só que o negócio começa a ficar sério e a polícia começa a bater às portas de Dogville atrás de Grace (no final do filme você entenderá porque a polícia), e a população, que até então tinha se mostrado amorosa para com a jovem, começa a explorá-la cada vez mais, para que assim eles pudessem escondê-la. Inicia-se um misto de chantagem e interesse em cima de Grace.

Grace faz de tudo na cidade, desde dar aulas na escola e trabalhar no cultivo das maçãs até satisfazer um velho sexualmente. Exploração parece uma palavra amena perto do que essa mulher sofre, porque além de tudo isso ela tem que se preocupar em fugir de quem a persegue fora dali. Escravidão define melhor a condição de Grace, ela se torna prisioneira da cidade e passa a usar correntes após sua primeira tentativa de fuga.



Quando disse no começo do post em DESAFIAR CONVENÇÕES, estou me referindo principalmente ao cenário do filme, que, aliás, não existe. Todo o espaço que representa a cidade é marcado com giz no chão, delimitando as casas, a Igreja, as macieiras e todo o resto. Minimalista, o diretor só fez uso de alguns objetos de cena, a ausência de cenários permite que o espectador veja os coadjuvantes em suas práticas rotineiras e totalmente desfocados da cena principal que ocorre no primeiro plano da imagem. Isso é magnífico e dá um grau de complexidade absurdo ao filme, pois atentar aos codjuvantes fora da cena é essencial ao entendimento da obra

Tirando o cenário do foco, o diretor conseguiu que o espectador prestasse atenção naquilo que ele realmente quer mostrar no filme: “a desumanidade que brota da humanidade”.



Os coadjuvantes do filme representam essa tal desumanidade, exclui-se daí apenas o personagem de Paul Bettany, que apesar de DIZER amar Grace, ele é um homem passivo e frouxo, de discursos vagos e metido a intelectual, que não consegue enfrentar os moradores em prol da "amada". É aqui que a esperança que Grace tinha na humanidade começa a se esfacelar, já que Tom é o único ser humano que ela confia. Eu particularmente achei Tom o personagem mais interessante da obra, tem nuances de aproveitador sexual barato que se mesclam com um gênio introvertido. O resto do time de coadjuvantes (brilhantes por sinal: Stellan Skarsgaard, Lauren Baccall, Patricia Clarkson, Philip Baker Hall e Chloe Sevigny) representam o sofrimento de Grace, que vão desde orgulho, avareza, vaidade, preguiça, luxúria e inveja.
O que Grace vive é uma verdadeira Odisséia. Nicole Kidman é sofrimento a flor da pele. É lindo de ver ela trabalhando tão bem.

O filme é uma crítica ferrenha à sociedade estadunidense. Uma crítica a essa potência que o ser humano tem em ser vil, hipócrita e mesquinho, um individualista conservador e possessivo. Lars Von Trier costura isso de maneira tão perfeita que resta-nos apenas o recolhimento e a reflexão (provavelmente) negativa do que é a sociedade. No final do filme essa crítica fica mais clara a partir da música de David Bowie e das decisões tomadas por Grace, que culminam num final trágico.



O filme é sublime. Não só por inovar, quebrar convenções, mas por tratar de um tema tão complicado (às vezes parece que estão apontando um dedo na nossa cara, mesmo que de forma branda) de uma maneira bem natural. Os atores tiveram que se esforçar e dar o máximo de seu potencial, pois gravaram todas as cenas em cima de um tablado, ou seja, exigia experiência em teatro.



Quanto vale a minha dignidade? QUANTO VALE A DIGNIDADE DO PRÓXIMO?

Lars Von Trier apresenta uma percepção da sociedade onde impera o cinismo, a mentira e a naturalização da maldade. E acima de tudo consegue manter nossas cabeças ocupadas por um bom tempo após o filme.

Dogville é uma síntese espetacular da humanidade frente aos seus objetivos, percepções e interesses.

2 comentários:

  1. Assisti este filme esses dias. Adorei a perspectiva do cenário!
    Tenho que te passar um contato de um professor que também é diretor. Eu acho que seriam bons cinéfilos amigos. =)

    Beijão!

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  2. Obrigado carol(ta se achando íntimo já).

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