segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Por fora, nem o chão. (Crítica: Interiores / 1978)

Nunca houve espaço para sentimentos verdadeiros. Entre nenhum de nós. Nenhum.



A primeira obra do mestre Woody Allen a ser resenhada pelo Cinemática, não estará entre seus principais trabalhos, tampouco será parte de sua essência no Cinema. Bastante amado pelo seu tipo de humor instigante e inteligente, pelo desfile de suas musas inspiradoras na tela, o filme escolhido vai passar longe disso. Tem humor? Tem, mas um humor que pende mais para o lado da claustrofobia. Tem musa? Tem, sem nenhum apelo a vaidade, que é totalmente deixada de lado. A obra caminha por um lado pouco explorado pelo diretor.

Escrito e dirigido por Woody Allen, Interiores (Interiors, EUA. 1978) é, talvez, uma das obras mais depressivas da carreira do renomado diretor. Ele ainda usa de todos os seus truques e genialidades, mas, ainda assim, a obra se configura como sendo uma válvula de escape dentro da sua longa caminhada cinematográfica.



Interiores trata de família, trata de perdas e de como reagir a elas, fala de falso abandono na infância, cutuca na ferida dos irmãos potencialistas e dos mais “normais”, é um ode à solidão rodeada por pessoas. Allen escreve um roteiro que aborda de maneira minuciosa às questões de mais apelo na vida da família norte-americana conservadora da década de setenta. Corriqueiras questões como a preferência por um dos filhos, ou a aparente depressão pronta pra explodir, servem de mote para a decadência de uma família.

Claramente inspirado no estilo Bergman de se fazer cinema, Woody Allen fez de um de seus primeiros dramas um verdadeiro achado da carreira desse cultuadíssimo diretor.

Centralmente, Interiores trata do desmantelamento das relações afetivas de uma família. Tudo começa quando Arthur (E. G. Marshall) resolve se separar da mulher, Eve (Geraldine Page, saudosa e grandiosa como sempre). O casal não é o ponto central do filme. A narrativa se concentra nas atitudes, fracassos e traumas das três filhas desse casal: Renata (Diane Keaton, uma das grandes musas de Allen), Joey (Mary Beth Hurt, muito boa, por sinal) e Flyn (Kristin Griffith).



A palavra interior, que de alguma forma, dá título ao filme, cabe mais do que uma metáfora. Os interiores ganham vida, a casa que costumava ser decorada com árvore de natal, vasos caríssimos, atribuídos principalmente ao bom gosto da matriarca, passa a ser basicamente simples: mesas brancas, com cadeiras cruas, paredes limpas, taças reluzentes, tudo no tom de “bege e terra” . Durante o processo de demência da mãe, devido à separação conjugal, as filhas se revezam em suas angustiantes vidas para dar apoio a mesma. Renata é uma escritora talentosíssima que sofre com a síndrome de inferioridade do marido e com a inveja de Joey, esta ainda não descobriu sua verdadeira vocação e só tem como ponto de apoio, a preferência do pai, Flyn é objeto de desejo do marido de Renata e uma atriz fracassada. Repare: sem nenhuma estrutura social e interna, essas mulheres devem restabelecer os interiores da própria família, aliás, a palavra “própria” entra o tempo todo no texto de Allen.

Tudo se complica quando Arthur encontra uma nova companheira, Pearl (Maureen Stapleton, radiante). A mulher, que dá um novo sopro de vida ao rico empresário burguês, é também responsável por toda a tragédia (ou não) que vai acontecer na história. A ideia de uma separação revogável cai por terra e a situação se torna mais difícil de lidar.

Contudo, a história deve ser mantida com várias interrogações, não quero estragar o prazer que espero que todos tenham ao ver esse filme único de Allen.



Partimos então para algumas características da obra. Primeiro: a falta de trilha sonora, e isso, a gente só se dá conta no final do filme. Allen dá preferência aos diálogos permanentes, a fala jogada direto na cara do espectador. Não existem rodeios, você sabe na hora ou o silêncio se instala. Música é imperceptível ou quase inexistente. Segundo: as personagens incríveis que Allen conseguiu construir. Desde a seca Renata até a insana Joey, como da magnífica Eve até a gloriosa Pearl. As personagens se escondem do espectador, mas, ao mesmo tempo, pedem socorro, pedem auxílio nas causas que afundam suas respectivas vidas. Terceiro: o trabalho da direção de arte, que conseguiu acompanhar toda a melancolia da história, tanto nas roupas como nos cenários, nos dias nebulosos de praia e na depressão latente das casas.

A típica família burguesa colide com seus próprios preceitos de sucesso tanto na vida profissional quanto na vida privada. Todos tentam ser manter ávidos em sua monotonia, elegantes na sua posição social, fortes no pensamento familiar, mas nada disso se configura, tudo vira um caos e pacificamente (entenda isso como a imobilidade das filhas) vai se ajeitando.



O filme foi reconhecido com cinco indicações ao Oscar. Além de diretor, foi indicado na categoria de Melhor Atriz, para Geraldine Page, e Atriz Coadjuvante para Maureen Stapleton. Page realmente é assombrosa, desde sua voz confundida com uma súplica infantil até seu olhar, enfeitado com uma forte olheira. A atriz que faleceu há mais de vinte anos, incorpora de maneira impressionante o sofrimento da mulher submissa e arrogante. Indefinível. Stapleton também faz jus a sua indicação, não deve ter sido fácil ser a única alma feliz no meio de tanto conflito psicológico.

Na interiorização de seus personagens, de sua história, de sua fase bergmaniana, Woody Allen escreveu e filmou uma pérola, até então, muito bem escondida por uma ostra feroz que insiste em comandar sua carreira.

2 comentários:

  1. Um filme delicado e muito, muito, bonito do mestre Allen. Seu trabalho mais diferente, ao meu ver, um filme subestimado e que acho brilhante. Teu texto percorre bem os sentidos subjetivos da obra, parabéns pela rica análise. Ainda não achei esse em dvd, quero comprar. abs

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